Múltiplos fatores pressionam a população mais vulnerável. Em 2022, vale pensar em como mobilizar a sociedade civil para o país superar a pobreza crônica
Tem sido bastante complexa a análise dos rumos da recuperação econômica do Brasil e do mundo, em face da crise sanitária e econômica provenientes da pandemia da Covid-19.
Pouco mais de 60 dias atrás, estávamos refletindo sobre esta recuperação de modo mais livre, agora, com o surgimento e disseminação mundial de uma nova variante do SARS-COV 2, novas restrições, debates e incertezas voltaram a habitar o contexto de nossas discussões.
Esta condição nova agrava situações que, no caso do Brasil, já vinham se mostrando em processo contínuo de piora, dadas as dificuldades econômicas e políticas por que passamos desde meados da década passada, especialmente com a recessão ocorrida a partir de 2014.
Um exemplo importante do agravamento de nossos problemas nacionais tem relação com a ampliação da insegurança alimentar no país, que experimentou piora no período de 2014 a 2018 e, em 2020, mesmo com a política do Auxílio Emergencial, agravou ainda mais as condições de vida da população mais pobre, que voltou a enfrentar o fantasma da fome como uma condição nefasta de sua baixa qualidade de vida.
Este tema aparece de maneira bastante detalhada no VIGISAN, Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado agora em 2021, por iniciativa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Rede PENSSAN, e executado pelo Instituto Vox Populi, com apoio da ActionAid Brasil, Fundação Friedrich Ebert ? Brasil, Instituto Ibirapitanga e Oxfam Brasil.
O inquérito baseou-se em amostra de 2.180 domicílios, representativa da população geral, considerando as grandes cinco grandes regiões do país e a localização dos domicílios, em áreas urbanas e rurais. As entrevistas foram feitas em visitas domiciliares, no período de 05 a 24 de dezembro de 2020. E a metodologia da pesquisa possibilitou a comparação dos dados obtidos com outros inquéritos nacionais, conduzidos pelo IBGE, permitindo entender a dinâmica da questão da insegurança alimentar no período de 2004 a 2018 e durante a pandemia, em 2020.
Como demonstra o relatório: ?Os resultados do inquérito mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados, menos da metade dos domicílios brasileiros (44,8%) tinha seus(suas) moradores(as) em Segurança Alimentar. Dos demais, 55,2% que se encontravam em Insegurança Alimentar; 9% conviviam com a fome, ou seja, estavam em situação de Insegurança Alimentar grave, sendo pior essa condição nos domicílios de área rural (12%).?
Este percentual de 9% de brasileiros em situação de fome representa 19,06 milhões de pessoas, o que corresponde à toda a população das capitais de São Paulo e Rio de Janeiro, somada, convivendo diariamente com a fome!
Retomada econômica, controle da pandemia, eleições presidenciais e estaduais, inflação e a perspectiva de crescimento econômico baixo comprometem fortemente o cenário de 2022, mais ainda quando temos em mente o dado de insegurança alimentar grave que descrevemos acima.
A pergunta é: o que fazer?
Não me canso de falar em governança compartilhada, que incorpora como prática central a articulação institucional dos diferentes setores da sociedade ? público, privado e sociedade civil organizada ? que, em conjunto, buscam soluções cooperativas para a resolução dos problemas enfrentados no cotidiano do cidadão.
Assim, durante a pandemia, no exemplo do Renda Merenda, apoiamos o setor público com recursos privados de doação, para cumprir o objetivo de não desamparar crianças e jovens, matriculados nas redes públicas da capital paulista e o governo estadual de São Paulo, em relação à sua alimentação.
Construímos assim, uma ponte com o setor privado, colaborando na constituição de um processo transparente de governança compartilhada, essencial para o apoio às famílias naquela hora tão grave e incerta.
O desafio de vencer a fome passa também, e necessariamente, pela redução da pobreza e a constituição de políticas públicas, baseadas no conceito de governança compartilhada, que possam reunir sinergias diversas para enfrentar as duas questões.
Esta combinação também encontramos na iniciativa da Gerando Falcões, liderada pelo Edu Lyra, ao conceber o Favela 3D (Digital, Digna e Desenvolvida), em parceria com a prefeitura, o governo de São Paulo e apoio da iniciativa privada.
O objetivo do projeto, nascido na comunidade, com os moradores, de baixo pra cima, permitiu que se criasse um acordo social envolvendo governos, iniciativa privada e a sociedade civil.
Atacando as múltiplas dimensões da pobreza na favela de Marte, no município de São José do Rio Preto, do investimento total de R$ 58 milhões, R$ 15 milhões vêm da iniciativa privada, para construir moradias, gerar renda, melhorar condições de saúde, apoiar mulheres e crianças e dar opções de lazer e cultura. Trata-se de um ?plano de decolagem familiar?.
O Renda Merenda, Favela 3D, portanto, são exemplos concretos de como a governança compartilhada, ou seja, a sinergia entre setores público, privado e sociedade civil podem conceber novas políticas, com base na inovação, transparência e busca pelo resultado.
Dada a complexidade da situação que vivemos atualmente, em que múltiplos fatores pressionam o dia a dia de nossa população mais vulnerável, empurrando para uma situação de pobreza associada à insegurança alimentar, é necessário ampliar esses exemplos e criar condições para que este novo modelo de governança possa se expandir e gerar impacto positivo sobre a vida das pessoas.
Mesmo diante de tantos desafios, vale pensar 2022 como um ano em que esses cases de transformação sistêmica possam ser criados e replicados, para que superemos a pobreza crônica.
É um grande sonho, que já começamos a construir.
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