Choque de oferta sobre a inflação deve persistir, diz Felipe Salles, do C6

'Devemos conviver com esse problema por mais tempo', diz Salles sobre restrições à produção global; ele alerta para riscos da retirada mais rápida de estímulos pelo Fed e o impacto sobre o Brasil

A inflação tem sido um dos temas de preocupação sobre a economia mundial e a brasileira em 2021 e isso deve persistir em longo de 2022, a despeito do processo de retirada de estímulos e de aperto monetário adotado por bancos centrais mundo afora.

Uma das razões está nas restrições sobre cadeias de produção globais, que têm levado a uma dinâmica inflacionária diferente do padrão histórico: os preços de bens estão subindo mais do que o de serviços. A questão feita por bancos centrais é sobre quanto tempo esse fenômeno deve continuar.

?Não está parecendo que será resolvido tão rápido assim, que será em alguns meses. Os dados mostram que a situação não está melhorando tanto na margem. Devemos conviver com esse problema por mais algum tempo?, disse Felipe Salles, economista-chefe do C6 Bank, em entrevista à EXAME Invest.

Não se trata de uma variável isolada no mundo desenvolvido. ?Se isso continuar no ano que vem, vai também afetar a inflação no Brasil?, afirmou Salles, que anteriormente foi economista do Itaú BBA.

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Diante de um quadro inflacionário nos Estados Unidos que se acelera e se dissemina para mais setores, os riscos para a economia brasileira são relevantes e ajudam a compor um quadro de incertezas que dificulta o trabalho do Banco Central brasileiro e a sua missão de ancorar as expectativas de inflação.

?Nossa preocupação com a inflação americana está um pouco acima da média de mercado. O risco é o Fed retirar liquidez de maneira mais rápida do que se imagina. Inclusive, ele já vem dando sinalizações nesse sentido?, afirmou Salles. Veja abaixo os principais trechos da entrevista:

Quais as perspectivas para 2022 para a economia brasileira e a mundial? A inflação continuará a ser o grande tema de atenção?

Várias economias do mundo estão crescendo menos que o esperado e apresentando um quadro de inflação em aceleração. No cenário global, notamos que há empresas com dificuldades de produção. É uma restrição pelo lado da produção. O exemplo clássico é o da escassez de semicondutores, que são utilizados para diferentes indústrias, como a de automóveis. Outro exemplo citado é dos portos, com navios à espera de autorização para atracar e descarregar mercadorias.

Quando a demanda por um produto aumenta, a empresa amplia a produção para fazer frente à demanda. Se não consegue fazer isso, ela sobe preço. É isso o que está acontecendo atualmente.

Quando notamos a inflação global, há um ponto muito interessante. Vou focar nos Estados Unidos. Historicamente, a inflação de serviços é bem mais alta do que a de bens. Isso acontece porque normalmente a produção de bens tem um ganho de produtividade e com tecnologia. Isso se vê também no Reino Unido, no Brasil etc.

Neste ano, a inflação de bens está mais alta que a de serviços. A aceleração da inflação como um todo e a composição vão nessa direção.

A grande questão é quanto tempo isso vai durar até a normalização. Será que normaliza no ano que vem ou depois? Não está parecendo que será resolvido tão rápido assim, que será em alguns meses. Os dados mostram que a situação não está melhorando tanto na margem. Devemos conviver com esse problema por mais algum tempo.

O que sugere que a inflação não é mais tão transitória como enxergava o Fed.

Nos Estados Unidos, no início a inflação estava concentrada em alguns itens diretamente relacionados à pandemia. Por exemplo, passagens aéreas. As pessoas ficaram muito tempo sem viajar. Quando a demanda voltou, os preços subiram. O mesmo vale para hotéis, automóveis usados e outros serviços e produtos. As pessoas falavam que era algo que acabaria se normalizando.

Mas estamos vendo algo diferente. A inflação está começando a se espalhar. Tem um índice que o próprio banco central americano divulga, que é a mediana do PCE ou do CPI [dois índices de inflação ao consumidor]. Se a mediana é dois, metade dos itens está abaixo de dois, e a outra metade, acima. Esse índice está começando a subir na margem. Como ele pega a mediana dos itens que compõem a cesta, quando começa a acelerar, não dá para dizer que é um item ou outro que está subindo. O grau de preocupação quanto à inflação nos Estados Unidos sobe um pouco mais.

Como esse cenário afeta as perspectivas para a economia brasileira? O início do aumento dos juros nos Estados Unidos ainda fica o segundo semestre de 2022?

Por enquanto, está em linha com o que o mercado esperava. O tapering [processo de retirada de estímulos] começou agora, deve acabar na metade do ano que vem e depois vem o juro. O risco está no fato de que o cenário é incerto. Nossa preocupação com a inflação americana está um pouco acima da média de mercado. O risco é o Fed retirar liquidez de maneira mais rápida do que se imagina. Inclusive, ele já vem dando sinalizações nesse sentido.

Quando isso acontece, os preços de ativos tendem a sentir, inclusive moedas. Há o risco de isso levar a uma desvalorização maior não só do real como de outras moedas. Não é um risco desprezível dado esse ponto que eu comentei, de que a inflação americana dá sinais de que está se espalhando por outros setores da economia.

Outro impacto: nós achamos que parte da inflação que vimos neste ano tem a ver com preços de commodities globais. E isso afeta o Brasil. Mas parte se deve a essas dificuldades de produção que eu comentei.

Dito de outra forma: quando eu coloco preços de commodities no meu modelo para tentar prever a inflação de bens e serviços no Brasil, e eu acerto esses valores, ainda assim não consigo explicar a inflação toda. E vem acima do que era esperado.

Por quê? Porque de algum modo essas restrições nas cadeias de produção estão afetando o Brasil também. Se isso continuar no ano que vem, vai também afetar a inflação no Brasil.

Diante desse cenário, é factível esperar que haja a convergência da inflação para a meta em 2022 com o aperto monetário sinalizado pelo Banco Central?

De novo, o cenário está muito instável, com muitas incertezas. É um desafio enorme trazer uma inflação que deve ficar em torno de 9% [a projeção do C6 para 2021 é de 9,8%] para 3,5% [o centro da meta em 2022]. Isso porque a economia brasileira ainda tem um grau de indexação, seja formal ou informal, muito elevado. A inflação passada ainda é um balizador para a formação de preços no ano corrente. Seria um choque muito grande. Acho algo difícil.

Nas nossas projeções, a inflação não converge para a meta em 2022, não. Fica acima disso. Para 2023, aí sim, a inércia é bem menor e dá para afirmar com um grau maior de confiança de que a inflação vai ficar em torno da meta.

Com qual cenário base vocês estão trabalhando para a Selic em 2022?

Nós achamos que a comunicação do Banco Central é compatível com uma Selic a dois dígitos. No fim do ciclo, por ora, algo como 11,75% parece razoável. Evidentemente, isso vai ter implicações para as variáveis macroeconômicas.

É relevante salientar que esse tipo de choque de oferta, que afetou a inflação no mundo inteiro, é difícil de se combater, porque não tem origem doméstica. Não tem a ver com demanda no Brasil, mas com questões globais. O mais importante em relação ao aperto monetário no Brasil é a questão das expectativas. Não permitir que esse choque inflacionário se propague para frente.

Acho natural a inflação ficar um pouco acima da meta no ano que vem, por causa na inércia, como comentei. Projetamos uma inflação de 5%. É difícil trazer uma inflação em torno de 9% para a meta. Mas, se o aperto monetário conseguir ancorar as expectativas, e eu acho que vai conseguir, em 2023 teremos um quadro mais benigno.

E qual a sua visão para as perspectivas do quadro fiscal? A PEC dos Precatórios passou no Congresso em novembro. Isso já estava precificado?

Depende do momento em você colocou no preço. No curtíssimo prazo, sim, a mudança já estava no preço. Na medida em que a mudança ganha ares mais concretos, o grau de incerteza diminui e o mercado tende a se acalmar.

Por outro lado, o mercado tende a não gostar de qualquer alteração que seja vista como uma mudança no teto de gastos e a como vai ficar o fiscal daqui para frente.

Qual a sua expectativa em relação a essas incertezas fiscais, dado que vamos entrar em ano eleitoral?

A incerteza relacionada a mais gastos no curto prazo acho que não é mais a grande questão. Mas a incerteza no cenário global segue muito grande. E isso pode nos afetar bastante. Imagine que o banco central americano seja obrigado a enxugar liquidez mais rapidamente. Isso afeta o dólar e pode ter impacto na inflação. O cenário como um todo está muito incerto, incluindo a pandemia, que não dá para dizer que terminou. Incerteza é o que não falta para o cenário econômico.

Houve um estresse grande em câmbio e juros no Brasil diante dessas incertezas. Dá para esperar que os ativos voltem a melhorar no curto prazo?

É difícil de saber exatamente o que está precificado em juros. Falamos na expectativa de 11,75% para a Selic. Na nossa visão, é suficiente para trazer a inflação para a meta em 2023, com queda de juros para 2023. O Banco Central consegue cortar juros lá na frente.

Mas a curva de pré precifica mais do que isso. Isso significa que o mercado está discordando dessa visão? Eu acho que não. Tendo a achar que o mercado está embutindo algum prêmio de risco. A questão fiscal já estava no preço, e bem ou mal o governo mexeu no teto de gastos, e isso gera mais dúvidas sobre a trajetória fiscal no médio prazo. E há todas as incertezas no cenário global que podem jogar a inflação mais para cima. Essas incertezas podem pedir um aperto adicional.

Quando perguntam o nosso cenário, nós colocamos aquilo que é mais provável. Mas o mercado não coloca no preço o que é mais provável, mas todas as possibilidades, ponderadas pela probabilidade.

E qual a sua visão sobre o câmbio? As incertezas vão impedir a apreciação do real?

Sim, acho que o câmbio reflete em grande parte as incertezas fiscais. Conseguimos fazer uma conta nos nossos modelos que aponta como estaria o câmbio se não houvesse o risco fiscal e as incertezas relacionadas. O dólar estaria em algo entre 4,00 e 4,50 reais, mais perto de 4,00 reais. Mas a incerteza fiscal não é algo de hoje, é um Calcanhar de Aquiles da economia brasileira já há bastante tempo.

E as incertezas relacionadas ao desfecho das eleições?

O que importa para a economia e as projeções é qual a política econômica a ser adotada pelo próximo governo, e isso não se sabe ainda, porque não sabemos o vencedor. É uma incerteza comum em anos de eleições.

Falamos muito de incertezas. O que pode dar certo e melhorar o cenário para a economia brasileira?

Começando pelo mundo: uma notícia muito boa seria a restrição da oferta arrefecer. Isso teria inúmeras repercussões: primeiro, o mundo cresceria mais. E isso impacta o Brasil. Tem uma regra de bolso: com tudo o mais constante, se o mundo crescer 1% a mais, o Brasil tende a crescer 1% a mais também.

A normalização da oferta de semicondutores, o combate à Covid, o funcionamento dos portos, a redução de problemas de energia que vemos em alguns países, tudo isso faria o mundo crescer mais e teria efeitos deflacionários. As firmas conseguem fazer frente à demanda produzindo mais e a inflação iria para baixo.

E isso permitiria que o Banco Central reduzisse juros e ajudaria a ancorar as expectativas. E isso também reduziria significativamente o risco de o banco central americano subir os juros mais rapidamente.

Fonte: Epoca

12/12/2021 12:20

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