Processo movido contra a gigante Activision Blizzard escancara cultura nociva no mercado e joga luz sobre casos semelhantes em outras empresas
Por Cauê Madeira *
Desde o final de julho um dos assuntos mais comentados no universo gamer é o processo contra a Activision Blizzard movido pelo governo da Califórnia, nos EUA. A empresa, que detém importantes propriedades intelectuais como Call of Duty, World of Warcraft e Candy Crush, é considerada uma das maiores do mundo em seu segmento.
O processo cita uma sufocante cultura de masculinidade tóxica, com denúncias de assédio moral e sexual incluindo o relato de suicídio de uma funcionária após repetidas investidas de seu supervisor. Além disso, as alegações reportam diversos casos de disparidade salarial, práticas discriminatórias de alocação de trabalhos e promoção e situações ainda mais agravantes em relação a mulheres negras. A íntegra do processo em inglês pode ser lida neste link.
A investigação foi aberta em 2018, e o próprio processo indica que houve uma tentativa de chegar a uma colaboração entre as partes para resolver os casos, mas que a Activision Blizzard teria falhado na busca em encontrar soluções satisfatórias às múltiplas questões problemáticas apontadas.
E então o processo veio a público.
A primeira atitude da companhia foi divulgar um comunicado que, em resumo, rebate as acusações e questiona a veracidade e intensidade dos casos relatados, em uma completa falta de sensibilidade corporativa que caiu muito mal tanto na comunidade gamer quanto entre seus colaboradores.
É claro que em todo processo se cabe investigação e a busca incessante por justiça. É perfeitamente possível que um ou outro caso reportado tenha passado por algum erro de interpretação ou que tenha, afinal, comprovada uma cadência factual divergente do que foi listado. Mas quando decide se posicionar dessa maneira, a Activision Blizzard optou por dar guarida aos acusados e não às vítimas. Uma mancha em sua história.
Chama ainda mais atenção o fato de, por anos, a empresa se posicionar publicamente e ser considerada como protagonista em políticas inclusivas de diversidade e respeito.
Em vez de solucionar a questão, a companhia acabou se enrolando ainda mais. Para tentar estancar o backlash do comunicado, J. Allen Brack ? o presidente da Blizzard ? enviou um e-mail a funcionários e imprensa lamentando todo o ocorrido e se comprometendo a resolver a questão. No mesmo dia levantaram um vídeo dele na BlizzCon de 2010 (a conferência realizada anualmente pela companhia) em que seis homens brancos no palco ? o líder em questão entre eles ? respondem com sarcasmo ao questionamento de uma fã na plateia sobre a sexualização das personagens femininas em World of Warcraft.
Alguns dias depois ele renunciou à posição sem citar o caso e alegando estar saindo para buscar novos desafios profissionais.
Enquanto isso, funcionários se mobilizaram, organizaram protestos, outros casos de assédio foram relatados e mesmo a comunidade de jogadores organizou encontros dentro do próprio jogo. Alguns iniciaram movimentos de doação a organizações que ensinam programação a meninas (a Girls Can Code), com o intuito de fortalecer a presença feminina na indústria.
Mas talvez o movimento mais significativo tenha sido a mobilização de comunidades e colaboradores de outras companhias. Na Ubisoft, por exemplo, cerca de 500 colaboradores assinaram uma carta apoiando a greve iniciada pelos funcionários da Activision Blizzard. O texto clama por mudanças de cultura em toda a indústria de videogames, incluindo a criação de um sindicato de profissionais do mercado, liderado por pessoas que tenham sido afetadas pelos comportamentos abusivos. O objetivo seria ajudar os trabalhadores do setor a entender melhor seus direitos.
A própria Ubisoft, outra gigante do setor e responsável pela franquia Assassin's Creed, foi alvo de denúncias de assédio envolvendo o departamento de RH, diretores da companhia e o próprio CEO, Yves Guillemot. Depois disso, a companhia repensou todo o seu fluxo de contratação, remodelou o RH e promoveu mais políticas de inclusão.
De modo semelhante, desde 2018 a Riot Games ? responsável pelo League of Legends ? passa por uma questão parecida, após ser acusada por uma cultura de discriminação de gênero. O processo aberto ocorreu após uma investigação do site especializado em cultura pop Kotaku, que trouxe a público as alegações de sexismo que incluía, de forma muito semelhante ao visto no processo da Activision Blizzard, relatos de assédio moral e sexual, disparidade salarial e ambiente hostil.
A Riot fez um esforço para cortar funcionários problemáticos de seus quadros, ofereceu treinamentos internos, implementou práticas de contratação e políticas inclusivas mais estruturadas, criou a posição de Chief Diversity Officer e contratou a consultoria de um professor da Harvard Business School.
O problema dessa história ? além, é claro, do impacto dos crimes em si ? é a percepção de um padrão, tanto no tipo de má conduta relatado, quanto na demora em se executar mudanças efetivas.
Cada uma dessas companhias é muito mais que um ambiente tóxico e nocivo. Elas são responsáveis por milhares de famílias, por grandes comunidades de fãs e têm um impacto cultural muito grande. A movimentação de se reestruturar os fluxos de contratação, trazer consultores e implementar políticas mais inclusivas é essencial. Mas a luta para derrubar a cultura de abuso sistêmico não acaba aí, ainda há muito a ser feito. O que veio à tona é, sem sombra de dúvidas, apenas a ponta de um iceberg que ainda vai demorar para ser demolido. A masculinidade tóxica na indústria gamer é maior do que imaginamos.
*Cauê Madeira é sócio-diretor na Loures Consultoria
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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