Passa: Guilhotina da praça pública digital está armada. Quem é o próximo?
As novas formas de poder do século 21 são psíquicas; e o poder psíquico é violento tanto quanto arrancar a cabeça
Por Ana Paula Passarelli*
É tremendamente forte passar por lugares que foram cenário de morte e execuções ou que guardam essas memórias para que as outras gerações possam saber o que aconteceu. Um desses lugares mexe comigo: a praça de La Concorde, em Paris. E ela tem muito o que nos contar sobre o cancelamento e o linchamento digital que vivemos hoje.
A praça de La Concorde, em Paris, hoje volta a ser habitada pelos turistas, mas centenas de anos atrás, foi palco de execuções públicas de pessoas condenadas à morte, ali mesmo, para todos assistirem. Era um acontecimento. Durante a Revolução Francesa, mais de mil pessoas foram anunciadas a subirem no palco, sentenciadas à morte e guilhotinadas logo em seguida. Tudo aos olhos de famílias inteiras, velhos, crianças, comemorando a morte em praça pública. Alguns dizem que ainda existiriam marcas de sangue no chão.
Acontecimento terrível da nossa história, um passado que preferimos esquecer. Mas hoje vivemos cenários de mortes no ambiente virtual que são tão violentas quanto arrancar uma cabeça. O que pode ser tão violento quanto isso?
Byung-Chul Han escreve no seu livro Psicopolítica, que as novas formas de poder do século 21 são psíquicas. E o poder psíquico é violento. Se em tempos passados havia instrumentos físicos afiados e disponíveis apenas ao cuidador da guilhotina. Com o linchamento virtual, hoje é como se cada um de nós tivesse sua própria guilhotina ou prancha ao mar formada por palavras afiadas, dispostas a ver o outro agonizar virtual e fisicamente.
Poderia acabar aqui esse texto se não houvesse plot twists para estudar. Esse desejo de agonizar o outro não necessariamente significa sua morte. Hoje, um linchamento virtual pode gerar um curioso efeito contrário: fazer a pessoa condenada ganhar ainda mais vida digital. Um agressor, flagrado espancando a esposa foi condenado no tribunal da internet e cabeças não rolaram. Na verdade, ele ganhou views, seguidores e possivelmente monetizará esse novo inventário de circulantes da sua praça pública digital.
Não levou muito tempo para que reproduziremos os mesmo comportamentos de uma era que deseja ser esquecida por tantos. Nos tornamos os juízes digitais da moral. Quem não se comporta de acordo com essa moral, que seja guilhotinado ou melhor, cancelado, porque não somos mais esse tipo de pessoa que corta a cabeça de um acusado em praça pública (será mesmo?).
Só nos esquecemos que ao usar a moral individual como critério de linchamentos virtuais, acabamos dando palco para que o condenado seja mais conhecido e reúna mais fãs. E a internet é grande demais para acharmos que podemos saber tudo e todos que a habitam. Por isso, no próximo desejo de cancelamento e linchamento virtual ao qual você for convocado pela sua moral, lembre-se que os executores contemporâneos ao invés da morte, podem acabar criando um digital influencer.
*Ana Paula Passarelli é CCO da BRUNCH, fundadora da TOAST agência de influência, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, TEDx speaker, creator e mãe da Emma
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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